"Desalojado por uma infiltração que, apesar da boa fama da meteorologia lisboeta, se transformou no ano passado em duas infiltrações e este ano em dois chafarizes, dei por mim, nas últimas semanas, à procura de casa. A ideia não me desagradou. Se não mudo de poiso de cinco em cinco anos, é porque dá um trabalhão encontrar casa nova, dá um trabalhão ainda maior mudar os móveis e os livros e dá um trabalhão superlativamente maior ainda mudar a morada às contas domésticas, encontrar o café e o quiosque certos para a nova rotina e, grosso modo, levar o novo bairro todo a decorar o nosso nome. Pode-se tirar o rapaz da Terra Chã, mas não se pode tirar a Terra Chã do rapaz.
De resto, as casas são sempre mais caras do que deviam, mas os valores indicados nunca deixam de ser “para negociar”. Os metros quadrados também se revelam sempre menos do que aqueles que vêm anunciados no site, mas a certa altura um tipo aprende que tem, logo à partida, de contar com menos trinta por cento de área. Nada a fazer: são as idiossincrasias da psique pátria. E, de qualquer forma, nunca é completamente desagradável a ideia de começar de novo, num lugar novo, com cheiros novos, rodeado de rostos novos e munido de esperanças novas também.
Adiante. Encontrei a casa que pretendia ao fim de cinco minutos apenas. Nem de propósito: ficava precisamente do outro lado da rua, janela do novo quarto e varanda do velho escritório mirando-se uma à outra, como que disputando-me. Acontece que sou casado, por sinal com uma mulher – e, como tal, enquanto duravam as negociações, não tive outra alternativa senão ir à procura de planos B, visitando tudo muito bem visitadinho e fazendo uma shortlist, visitando tudo novamente e reduzindo a shortlist, visitando outra vez e elegendo um top3, visitando só mais uma vez e escolhendo, enfim, a melhor de todas as casas alternativas, para o caso das tais negociações falharem (e que, por acaso, por essa altura até já nem devia estar disponível).
De caminho, experimentei os bairros ricos e os bairros pobres. Fui às zonas da moda e às periferias – conversei até sobre uma moradia nos subúrbios, hipótese sobre todas as outras absurda. Era indiferente: a vencedora estava escolhida, tudo o resto era conversa apenas. Mas o facto é que algumas das casas que vi divertiram-me e outras deprimiram-me. Divertiram-me as casas com luz, nichos curiosos e divisões inesperadas, que o mediador revelava com um gesto teatral, abrindo uma porta como um ilusionista que me tirasse de trás da orelha um ovo cozido. E deprimiram-me as casas minimalistas.
Eu ainda consigo perceber a arquitectura minimalista, mas jamais perceberei – e toda esta crónica, afinal, para dizer isto – a decoração minimalista de uma casa. Entra-se numa casa minimalista e simplesmente não se percebe do que se ocupam aquelas pessoas: o que lêem, o que ouvem, do que falam, no que pensam. Aparentemente, ocupam-se em exclusivo de fotografar-se a si próprias na sua casa – e no resto do tempo ficam ali, de novo a olhar para a sua casa: para o sofá enorme, com uma só almofada ocre ao meio, e para o candeeiro de pé alto, com abat-jour do mesmo pantone; para o pufe a um canto da sala, onde ainda ninguém se sentou a ver se não engelha, e para a planta no canto oposto, que tem nome e tudo (chama-se “Julie”, com pronúncia inglesa); para a aparelhagem Bang & Olufsen, seguramente destinada a ouvir a RFM, e para o ecrã plasma em torno do qual tudo o resto gravita, e onde se podem ver os programas da SIC Mulher.
Pensava que apenas os solteirões viviam em casas assim? Acreditem: famílias inteiras também. E, no entanto, é como se, ali, tudo batesse certo. Os livros, provavelmente, estão no iPad. O discos talvez no iPod. Para necessidades primárias, há o ginásio. E se, entretanto, a alma pede trejeitos, então o melhor é ir exercê-los no carro, para não engelhar também.
A ideia que dá é que são elas próprias, aquelas pessoas, peças de decoração nas suas casas – e que, se algum dia precisarem mudar de uma casa para outra, lhes bastará alterar as coordenadas do GPS. Se querem que vos diga, não há solidão igual à de uma casa de revista."
Joel Neto
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")
NS', 15 de Janeiro de 2011
www.joelneto.com
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